O patrimônio líquido das empresas é calculado pelo total de ativos menos os passivos circulante e não circulante. Em caso de o valor ficar negativo, significa que os bens e direitos da empresa não são suficientes para cobrir as obrigações da companhia.

Foi o que explicou Marcos Piellusch, professor de finanças e coordenador de cursos da Fundação Instituto de Administração (FIA – LABFIN.PROVAR) e também diretor vogal do IBEVAR, ao contribuir para a matéria do Jornal Valor Econômico, publicado esta semana.

A matéria escrita por Cristian Favaro diz que a dívida de Gol e Azul mais que dobra e bate em R$ 45 bi, em três anos. O patrimônio líquido negativo cresceu quatro vezes, chegando a R$ 40 bilhões.

Leia a matéria na íntegra reproduzida em nosso Blog.

Após enfrentar a crise sanitária que fez mais de 95% da demanda desaparecer nos momentos mais críticos, as companhias aéreas veem o passageiro voltar, mas a situação financeira ainda sente o impacto da pandemia.

Em três anos, de 2019 a 2022, Gol e Azul viram sua dívida mais do que dobrar e o patrimônio líquido negativo cresceu quatro vezes, batendo em R$ 40 bilhões, segundo pesquisa do Valor Data.

Em 2019, antes da pandemia, o patrimônio líquido negativo das duas era de R$ 10,6 bilhões. A dívida financeira líquida, no mesmo período, passou de R$ 19,7 bilhões, para R$ 45,4 bilhões.

A situação é diferente na Latam, que tem patrimônio líquido positivo (US$ 30 milhões em dezembro de 2022) e reduziu a dívida, depois de ter enfrentado uma recuperação judicial.

As concorrentes Azul e Gol estão renegociando seus compromissos agora com os credores. O cenário de curto prazo é desfavorável para o setor, com dólar caro e petróleo bastante volátil. O dado positivo é a demanda, que continua
reagindo.

O patrimônio líquido das empresas é calculado pelo total de ativos menos os passivos circulante e não circulante. Em caso de o valor ficar negativo, significa que os bens e direitos da empresa não são suficientes para cobrir as obrigações da companhia, diz Marcos Piellusch, professor de finanças e coordenador de cursos da Fundação Instituto de Administração (FIA – LABFIN.PROVAR).

A contabilização do patrimônio líquido mudou a partir de janeiro de 2019, quando passou a vigorar a nova regra contábil IFRS 16. “Basicamente houve a entrada dos contratos de arrendamento, que passaram a fazer parte dos ativos como direito de uso e nos passivos como obrigações relacionadas a direito de uso”, explica o professor da FIA – LABFIN.PROVAR.

Antes, o efetivo pagamento do aluguel dos aviões era considerado como despesa, tal qual o salário de funcionários. A nova regra acabou trazendo uma distorção no patrimônio líquido das empresas no Brasil – com a alta do dólar, as dívidas cresceram, enquanto o valor do ativo em si, o avião, fica estável.

“Muitas pessoas falam que [as oscilações] não têm efeito caixa. Sim, isso é verdade. Mas a dívida se tornou mais cara e em algum momento a empresa vai ter de pagar [caso o câmbio não mude de direção novamente]”, diz Piellusch.

A questão chamou a atenção da auditoria que analisou os balanços de 2022 de Gol e Azul – ambas são auditadas pela EY. Nos pareceres divulgados juntamente com as demonstrações financeiras, a EY menciona a continuidade operacional e os dados de patrimônio líquido negativo como um dos principais assuntos de destaque na análise do exercício.

No caso da Gol, os auditores chamam atenção para a nota explicativa da própria empresa que trata do assunto, apontando o patrimônio líquido negativo de R$ 21,4 bilhões e o ativo circulante superior ao passivo.

A EY observa que “esses eventos ou condições, juntamente com outros assuntos descritos na nota explicativa 1.3, indicam a existência de incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional da companhia”. A EY encerra o comentário dizendo que “nossa opinião não contém ressalva relacionada a esse assunto.”

A Gol divulgou ao mercado no dia 8 de março os números do quarto trimestre e do ano fechado de 2022 sem o parecer da auditoria. No dia 21 enviou à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) o documento completo.

Procurada pelo Valor, a Gol afirmou que a maior parte do patrimônio negativo se deu pela variação cambial desfavorável dos últimos anos – a desvalorização do real em relação ao dólar é de quase 23% de 2019 a 2022 (considerando o dólar Ptax, do Banco Central). “A companhia segue trabalhando para gerar lucro e este fator não a afeta operacionalmente”, informou a Gol, em nota.

No caso da Azul, a EY também destacou o patrimônio negativo da empresa na casa de R$ 19 bilhões no parecer divulgado com os demonstrativos de resultados no início do mês.

Os auditores observam, no parecer, que a diretoria da empresa apontou medidas já implementadas e em andamento para manter a continuidade operacional, embora acrescentem que os cálculos que sustentam as premissas de rentabilidade e fluxo de caixa requerem por parte da diretoria “julgamentos com alto grau de subjetividade”.

Mesmo assim, a EY encerra dizendo que considera “aceitável o julgamento da diretoria da companhia de que não existe incerteza relevante relacionada com a continuidade operacional”.

A Azul anunciou no dia 6 de março que chegou a um acordo com credores que representam mais de 90% do seu passivo de arrendamento de aeronaves e 80% da sua dívida bruta – os termos e valores da negociação, entretanto, ainda não foram divulgados.

Já a Gol fechou em 3 de março um acordo de investimento de R$ 1,4 bilhão bancado pela holding Abra (criada pelos acionistas da Gol e Avianca) e alongando pagamentos para 2028.

Alexandre Wagner Malfitani, CFO da Azul, disse que a empresa deu um passo importante ao renegociar os arrendamentos com credores.

O cenário, disse, vai melhorar o endividamento e fazer a companhia deixar de queimar caixa neste ano. A empresa fechou 2022 com um patrimônio líquido negativo em R$ 19 bilhões – em 2019, eram R$ 3,5 bilhões.

“Temos um patrimônio líquido negativo desde antes da pandemia. É uma herança da combinação do [conjunto de regras contábeis] IFRS16 e da desvalorização cambial”, disse Alexandre.

Ele observou que, normalmente, analistas calculam o valor da empresa por outros múltiplos, como o Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização, na sigla em inglês) ou o valor de mercado. “Antes a Azul estava avaliada em R$ 20 bilhões de valor de mercado. Hoje está na casa de R$ 5 bilhões”, disse o executivo.

O resultado da Azul em 2022, assim como sua renegociação de dívidas com credores, foram bem avaliados pelos analistas do BB Investimentos, que passaram a recomendar a compra das ações Azul.

A equipe do Itaú BBA disse que a nova estrutura negociada com os arrendadores deve aliviar o caixa, embora os termos do acordo não tenham sido divulgados.

No caso da Gol, a equipe do Citi chegou a apontar os números como robustos. Observou que o acordo da empresa com a holding Abra resolveria boa parte das questões envolvendo a liquidez da companhia.

O Itaú BBA destacou o aumento de volume de tráfego. No último dia 22, a Fitch Ratings elevou as notas de crédito da Gol em moeda estrangeira e local de “C” para “CCC+”.

No dia da divulgação do balanço e da renegociação da dívida, em 6 de março, a ação da Azul disparou na B3. Fechou o pregão com alta de 37,9%. Neste ano, até esta segunda-feira (27), o papel acumulava alta de 3%. As ações da Gol subiram 7,45% em 8 de março, quando os resultados não auditados foram divulgados ao mercado. No ano, até ontem, os papéis
ainda têm desvalorização de 15,1%.

Ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos e em países da Europa, o governo brasileiro não deu auxílio financeiro ao setor aéreo durante a pandemia, que precisou buscar recursos no mercado. Mais endividadas, as aéreas tiveram que abrir conversas com os credores e renegociar suas pendências.

A Latam, sediada no Chile e que tem sua maior operação no Brasil, reestruturou suas dívidas por meio de recuperação judicial (Chapter 11, pela legislação nos Estados Unidos, onde ingressou com o processo) – o processo durou de maio de 2020 a novembro do ano passado.

O grupo chileno fechou 2022 com um patrimônio líquido positivo de US$ 31 milhões. E informa que reduziu sua dívida bruta em 37,5%. “Dessa forma, foi possível adaptar seus negócios à nova realidade e liderar por dois anos consecutivos (2021 e 2022) o mercado aéreo brasileiro, segundo a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil)”, informa a empresa.

O levantamento do Valor Data analisou o patrimônio líquido de oito empresas nacionais e internacionais de 2019 a 2022. As americanas e europeias aparecem com o indicador positivo, com exceção da American Airlines, que fechou 2022 com valor negativo em US$ 5,8, bilhões, embora tenha melhorado ante os US$ 7,3 bilhões do ano anterior.

Uma fonte que analisa de perto o setor diz que o cenário para as aéreas no Brasil é mais complexo, uma vez que as receitas aqui são em reais, enquanto os custos são majoritariamente em dólar, como combustível e arrendamentos de aeronaves, por exemplo. “As empresas aéreas lá fora não passam por esse problema. Se o dólar salta de R$ 3 para R$ 5 a despesa financeira também sobe. É possível passar tudo isso para a passagem aérea? Não…. o salário no Brasil é em real”, diz a fonte.

O sócio da consultoria Bain & Company e especialista em aviação André Castellini, diz que a pandemia mudou o mercado. O primeiro legado, diz, é que “cerca de um quarto das viagens de negócio vão deixar de acontecer porque as pessoas perceberam que para algumas delas a solução remota é suficiente.” E o “segundo grande legado é um endividamento maior e uma estrutura de dívida mais cara”.

Castellini disse que a demanda por voos, tem se mantido, apesar do patamar alto dos preços das passagens, o que mostra uma resiliência importante. “Mas o futuro vai depender do dólar e do petróleo. Em se mantendo o atual custo e fatores, a gente não vai crescer.

O setor deve andar de lado. A renda média do brasileiro não deve crescer nos próximos anos a não ser que o governo tenha um coelho na cartola”, finaliza ele.

Texto originalmente publicado no Jornal Valor Econômico em 28/03/2023